Decidi acabar de vez com a procrastinação. Sim! Chega de enrolar. Vou fazer uma lista com minhas tarefas atrasadas, colocar o trabalho em dia, arrumar aquelas gavetas que já não encontro nada. Não há mais como evitar! Vamos lá... Por onde começo? Lista? Gavetas? Matrícula na academia? Hum... Acho que vou fazer isso depois.
De repente resolvi voltar. Na verdade, partir nunca esteve
em meus planos, mas a vida não costuma pedir opinião. Às vezes nos convida,
outras vezes nos arrasta. Outras tantas simplesmente nós é que deixamos nos levar.
E sem saber ao certo o que houve, eis que fui sem querer e volto por acaso.
Olho ao redor. Tudo como deixei. Tudo diferente. Na verdade, o que muda é a
percepção. Algumas coisas fazem sentido, outras tantas não. Sigo tentando tirar
o pó do tempo. Nostalgia, tristeza, alegria... Um misto de sentimentos invade o
peito de quem fica tanto tempo distante e depois volta. Dá para recomeçar de
onde paramos? Creio que não. Talvez dê para fazer um novo começo... Se vou
ficar? Não sei. O que importa é estar aqui.
Ela, Direito. Ele, Economia. Ela, futura Juíza Federal. Ele, Analista Financeiro em Wall Street. O céu era o limite. E os dois desconhecidos brindaram ao sucesso iminente. Era tudo mágico. O som, as luzes, a bebida... E o universo apequenou-se. Sorrisos. Olhares. Desejo. Beijos. Sexo. Meses depois, ela trancou a matrícula para cuidar do bebê. Ele, já havia abandonado os estudos para cuidar das responsabilidades advindas. Hoje ela faz inflamadas sustentações orais sobre direitos e cidadania enquanto discute com as enfermeiras na fila do SUS. Ele negocia empréstimos a juros exorbitantes em instituições financeiras para negativados, a fim de pagar as contas atrasadas, mesmo sabendo que não conseguirá honrar o compromisso futuro.
A cena era brutal. Em meio a um lamaçal de sangue, uma mulher amarrada a uma cadeira, jazia desfigurada. Dentes arrancados, orelhas e dedos cortados, garganta dilacerada. Mais à frente, uma pilha de corpos de crianças esquartejadas - aparentemente os filhos - no meio do cômodo. Por sobre a mesa, três cabeças emparelhadas, "olhavam" em direção à mulher morta. Os policiais que aguentaram permanecer no local, adentraram a residência em busca do autor. Não foi necessário muito esforço. O homem estava a poucos metros da cena do crime. Não pareceu surpreso ao ser abordado. Permaneceu sentado, incomodamente tranquilo. Foi lhe dada voz de prisão. Ele não ofereceu resistência. Já em cárcere, confessou prontamente o crime. Questionado sobre a motivação que o levou a cometer tamanha atrocidade, disse friamente:
Nunca importou-se com os filhos, nunca valorizou a esposa. Perseguiu, pisou, derrubou sem cerimônias quem atravessou seu caminho. Desviou, roubou, matou. Fez de tudo para chegar ao topo. Conquistou uma legião de desafetos ao longo da vida e nunca se arrependeu. Mas ao morrer parece ter alcançado a redenção. Em sua lápide foram gravados os dizeres: Pai amoroso, marido fiel, cidadão exemplar. Com seu nome foram batizadas ruas e avenidas que não conheceu e também a escola que não colaborou para existir. Virou unanimidade. Ai de quem discordar...
Caminho me esgueirando pelas sombras. É preciso cuidado. É preciso silêncio. Desde aquele fatídico dia é preciso não ser percebido, se quiser sobreviver. O mundo agora é um lugar inóspito, hostil.
Nunca dorme sem um Filtro dos Sonhos por sobre a cama. Sempre pisa primeiro com o pé direito ao levantar-se. Nunca se esquece de colocar suas medalhas bentas no pescoço. Sempre pula sete ondas no réveillon. Nunca come aves que ciscam no primeiro dia do ano. Sempre faz oferendas aos orixás. Nunca começa uma semana sem antes ler o horóscopo. Sempre consulta os búzios antes de uma decisão. Nunca se esquece de rezar diante da imagem antes de sair de casa. Sempre mantém um feixe de patuás envoltos no retrovisor do carro.Nunca deixa de se benzer ao passar perto de uma igreja. Sempre transa sem camisinha.
