quinta-feira, 16 de maio de 2019

APOCALIPSE

Caminho me esgueirando pelas sombras. É preciso cuidado. É preciso silêncio. Desde aquele fatídico dia é preciso não ser percebido, se quiser sobreviver. O mundo agora é um lugar inóspito, hostil.

A maioria foi infectada por um vírus devastador, que surgiu e nos trouxe danos irreparáveis, irreversíveis. As pessoas foram perdendo a lucidez, perdendo a consciência, perdendo a humanidade, até virarem uma espécie de zumbi. De longe, elas ainda parecem normais, inofensivas, mas não se engane. São perigosas, raivosas. Andam em bandos, grunhindo desnorteadas, em uma busca insaciável de algo que nem elas mesmas sabem o quê. E se você for visto, já era. O destino é inglório. Ou você é contaminado e torna-se um deles, ou é destruído com requintes de crueldade.

Tudo agora é escasso. Falta comida, falta água, falta abrigo, falta amor, falta tudo. Não para todos, é claro. Os mais abastados conseguiram prever e se proteger. E embora também tenham sofrido perdas, ainda levam vantagem. Não precisam se arriscar invadindo casas em zonas de isolamento, em troca de uma lata de sardinha ou de um envelope de antibiótico vencido. Fizeram estoques de alimentos, remédios, roupas, combustíveis e se trancaram em suas fortalezas. Mas eles também têm seus fantasmas, pois aqueles que conseguiram enfrentar o caos com melhores recursos, agora travam uma guerra entre si, para assumir o controle de tudo, quando a poeira baixar.

E o mundo ficou dividido entre uma grande massa de vagantes inconscientes e pequenos e diferentes grupos de não infectados, armados, organizados, saudáveis e alimentados, posicionados em um  tabuleiro de xadrez, movendo-se estrategicamente em busca do xeque mate. 
Quem não adoeceu, mas também não fez alianças ou submeteu-se e não quer (ou não pode) guerrear, precisa ser invisível se quiser sobreviver. É um mundo cruel. É um mundo perigoso. Um mundo triste. Pensando bem, não mudou muita coisa.

terça-feira, 7 de maio de 2019

URGENTE

A vinheta do plantão de notícias interrompeu a novela e todos na sala ficaram apreensivos. Segundos se passaram até a repórter perceber que já estava no ar e sorrir para a câmera.
- Boa tarde! Interrompemos nossa programação para uma notícia urgente! A atriz e modelo Maria Silva, vencedora do reality show 'Big Farm Brasil', foi vista agora há pouco, entrando em uma clínica Pet aqui da zona sul, com seu cachorrinho Poppy. Ainda não se sabe se o cãozinho está doente ou se é só uma visita de rotina.
A câmera abriu o foco e mostrou uma multidão de fotógrafos amontoados na calçada e a repórter prosseguiu:
- Nós estamos aqui juntos com nossos colegas da imprensa aguardando uma definição e voltaremos a qualquer momento com novas informações.
Minutos depois, os principais portais de notícias da internet estampavam manchetes relacionadas. No dia seguinte, os jornais impressos também deram o devido destaque ao acontecimento - em letras garrafais em suas primeiras páginas. E ao longo da semana, o fato foi dissecado por programas de TV, rádio e sites diversos, que falaram sobre as roupas, os sapatos, o cabelo, o esmalte, e a vida amorosa da super celebridade. E no domingo o simpático cão e sua bela dona, receberam uma justa homenagem no programa líder de audiência e o público foi ao delírio.
No mesmo período foram criados três novos impostos e descoberta uma nova vacina, mas isso não mereceu mais que uma nota rápida no jornal da madrugada. 

segunda-feira, 6 de maio de 2019

PROTEÇÃO

Nunca dorme sem um Filtro dos Sonhos por sobre a cama. Sempre pisa primeiro com o pé direito ao levantar-se. Nunca se esquece de colocar suas medalhas bentas no pescoço. Sempre pula sete ondas no  réveillon. Nunca come aves que ciscam no primeiro dia do ano. Sempre faz oferendas aos orixás. Nunca começa uma semana sem antes ler o horóscopo. Sempre consulta os búzios antes de uma decisão. Nunca se esquece de rezar diante da imagem antes de sair de casa. Sempre mantém um feixe de patuás envoltos no retrovisor do carro.Nunca deixa de se benzer ao passar perto de uma igreja. Sempre transa sem camisinha.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A CASA


- Dizem que aquela casa é mal-assobrada.
- Dizem que à noite dá pra ouvir choro, gritos e correntes sendo arrastadas!
- Minha avó disse que o homem acorrentou os filhos e a mulher e pôs fogo neles. E depois se matou em seguida! 
- Bobagem! Vocês são uns cagões! É só uma casa velha, que o dono não pôde reformar e foi embora. Não tem fantasma nenhum.
- Não se deve brincar com essas coisas!
- Verdade! Não se deve abusar dos mortos!
- Minha avó disse que os espíritos atormentados moram lá e não deixam ninguém entrar.
- Besteira! Eu entro lá a hora que eu quiser!
- Duvido!
- Eu também duvido!
- Aposto que não tem coragem. Minha avó disse que quem entra lá nunca mais sai.
- Então vamos apostar! Dez reais de cada um e eu entro lá hoje a noite. Vocês esperam aqui do lado de fora.
- Eu topo!
- Eu também!
- Eu topo, mas tem que ser mais cedo, pois minha avó não gosta que eu fique até tarde na rua!

*****
- Trouxeram o dinheiro?
- Eu trouxe.
- Eu também.
- Vou te dar oito e depois te dou o resto. Minha avó não tinha trocado.
- Não me enrola, hein?! Lá vou eu. 
Abriu o portãozinho de madeira, caminhou por sobre os blocos de concreto que formavam uma trilha no meio do mato do jardim. Chegou à porta. Estava entreaberta. Empurrou. As dobradiças rangeram. Ligou a lanterna. Olhou para trás e deu uma piscadela.
-Vai ser moleza.
Entrou. A porta se fechou. Por alguns instantes ainda dava pra ver o facho de luz da lanterna dançando pelas paredes. Depois, tudo escureceu.
Algum tempo se passou e nada aconteceu. Nem barulho, nem luz, nem nada. De fora, os garotos começaram a se preocupar com o sumiço do companheiro.
- Será que ele morreu?
-Será que os fantasmas o pegaram?
- Xi... Acho melhor a gente chamar a minha Avó! 

quinta-feira, 2 de maio de 2019

FOCADO

O carro da transportadora mal estacionou e ele já estava a postos no portão, aguardando a entrega. Assinou às pressas e praticamente tomou a encomenda das mãos do entregador. Correu para dentro de casa. Abriu rapidamente a caixa. Do emaranhado de papel, fita adesiva e plástico-bolha, surgiu a esperada Máquina de Escrever. Os olhos brilharam. Colocou-a sobre a mesa especialmente reservada. Conferiu o exterior, tudo certo. Trocou a fita, verificou a lubrificação. Buscou um maço de papel. Tirou uma folha e colocou-a na máquina. Ajustou as margens, o espaçamento. Teclou algumas palavras. Perfeito.

Agora sim, poderia escrever. Tinha certeza que a seca de ideias era culpa dos computadores, com suas cores, brilho exagerado, ícones em demasia... E a famigerada internet! Não conseguia se concentrar diante daquilo. Era das antigas, mas papel e caneta era um meio lento demais para transpor a efervescência de seus pensamentos. Assim, a boa e velha máquina de escrever era a solução mais óbvia para manter o foco na escrita. Trancou a porta, pois não queria interrupções. Ligou o rádio, com uma sinfonia clássica tocando bem baixinho. Pôs uma folha limpa. Sentou-se confortavelmente na poltrona. Estendeu os braços e posicionou as mãos sobre as teclas. Esperou as ideias surgirem.

Dois dias se passaram e, tirando os intervalos de refeições corridas e poucas horas mal dormidas, ele ainda estava lá, diante do papel em branco. Uma semana depois, deixou a sala e voltou ao portão. Havia comprado O Livro das Inspirações e aguardava a chegada do entregador.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

ATITUDE

Tudo estava bem na vida de Lisa. Um bom emprego, uma nova graduação, vida social, amor em alta, de bem com a balança... Tudo Parecia perfeito demais. Uma hora a vida cobra, pensava ela. Ninguém pode ser feliz em tudo por muito tempo. Mas suas conquistas continuavam aumentado. Promoção, carro novo, viagem maravilhosa, pedido de casamento... Estava errado. Uma hora a vida cobra. E será que vou saber lidar com a derrota? - pensou. Então resolveu se antecipar. Pediu demissão, rompeu o noivado, afastou-se dos amigos. Ficou sem dinheiro. Ficou deprimida. E nada voltou a ser como era antes. Agora estava tudo nos eixos. Já tinha do que reclamar.