domingo, 28 de abril de 2019

DESCOLADO

- Qual é? Experimenta aí, pô! - disse um deles.
- Vai ficar acreditando em tudo que passa na TV? - completou o outro.
- Relaxa. Não vai acontecer nada demais. Vai ser careta a vida toda? - disse um terceiro enquanto dava uma longa tragada no cachimbo.
Pensou, pensou. Olhou para os lados, a fim de certificar-se que não tinha ninguém vendo. Pegou. Tragou. Sentiu uma explosão de sensações percorrendo seu corpo. Todos riram e aplaudiram. Riu de volta. Mais uma tragada. Meses depois, saía escondido com a última panela de um lar destroçado, a fim de conseguir uns trocados para alimentar o vício.

sábado, 27 de abril de 2019

PESADELO

Era uma bela manhã de domingo. Da varanda, ele olhava para o horizonte com orgulho. As árvores, os pássaros, o lago, as montanhas. Toda a beleza e vastidão da propriedade ainda lhe causava admiração. Esticou o corpo. Caminhou até a área de recreação no quintal. As crianças já brincavam animadas. Papai! Papai! Olha só o que eu sei fazer. Disse uma delas pulando do trampolim na piscina. Ele sorriu e acenou. Caminhou até a mesa. Sentou-se. Tomou um gole de suco. Sentiu braços macios envolvendo seu pescoço. Bom dia! Disse ela, beijando-o carinhosamente. Bom dia! Respondeu sorrindo e vendo-a caminhar deslumbrante em direção às piscina. Recostou-se na cadeira. Naquela altura da vida, estava em paz. Era um vencedor. Fechou os olhos. Acordou assustado, sem saber aonde estava. A cabeça doía insuportavelmente. Do seu lado na cama dormia uma desconhecida. Nua. Levantou-se. Caminhou sem rumo pulando sobre o amontoado de latas e garrafas espalhadas pelo chão. Pessoas estranhas dormiam amontoadas pelos cantos. Nuas, seminuas, vomitadas. O som alto e grave da música eletrônica lá fora colidia com seu corpo e fazia doer ainda mais sua cabeça. Entrou no banheiro. Procurou uma aspirina no armário. Tomou logo duas. Jogou água no rosto. Olhou para o espelho e sorriu aliviado. Tudo não passara de um pesadelo.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

TARDIO

Andou aos três. Aprendeu a ler aos dezenove. Namorou pela primeira vez aos vinte e seis. Casou-se aos quarenta. Largou o cigarro aos cinquenta e sete. Não percebeu à tempo que aquela dor insistente no peito lhe seria fatal.

PRECOCE

Aprendeu a falar com um ano. Aprendeu a fumar aos nove. Recusou conselhos aos onze. Perdeu a virgindade aos treze. Saiu de casa aos quinze. Com dezesseis já aplicava golpes de mestre. Foi pra cadeia a primeira vez aos dezessete. Tomou o primeiro tiro no mesmo dia em que tomou o último. Morreu aos vinte e um.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

CERIMÔNIA INAUGURAL

Uma saraivada de fogos de artifício anunciou que era um dia especial. Logo a multidão se reuniu. O sol escaldante de janeiro exigia que os engravatados se secassem o tempo inteiro com seus lenços de seda.
Discursos. Palmas. Gritos. Fogos. A banda tocou um dobrado. Alguém trouxe uma pá. Logo foi lançada a pedra fundamental daquilo que em alguns míseros meses (ou, no máximo, anos) seria um restaurante popular, para atender a população carente daquela região da cidade. Poses. Fotografias. Aplausos. Mais fogos. Mais dobrados. 
Deu-se por finalizada a cerimônia.Um sucesso. Os idealizadores entraram em seus carros de vidro fumê e foram comemorar em um restaurante chique. Os indigentes, aos poucos foram se dispersando, olhando para aquele monte de terra no meio do nada e imaginando as delícias que um dia ali comeriam e saciariam a fome de hoje.